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3.1.10

a pequena morte





A mulher que sobe as escadas para evitar encontros no elevador, é uma dessa pessoas comuns que sofre de melancolias sazonais e leva uma vida igualmente comum. Vai pelas escadas porque não tem nenhuma pressa para voltar ao trabalho, pois isso implica em falar, sorrir e , é claro trabalhar. Tudo isso despende muita energia que ela não queria gastar nessa tarde estranha.


Ela optou por fazer algumas coisas que nunca tinha feito.
Leu Paulo Coelho, tentou saltar de uma janela, mas sentiu vertigem e uma enorme covardia de se imaginar em pedaços. Pensou em comprimidos, cortar os pulsos e depois num atropelamento acidental.


Depois vagou pelas ruas ensolaradas e guardou seus planos de morte , momentaneamente num canto da mente, pois era preciso fingir que continuava a ser a mesma.


Subia as escadas sem pressa, deslizando a mão pelo corrimão de metal e pensando que a culpa era desse período do ano que sempre obriga as pessoas a fechar ciclos e repensar acertos e burradas. Dependendo da quantidade de serotonina circulante a balança pode pender mais para os erros e nesse caso é conveniente manter-se longe de penhascos, objetos cortantes, pílulas , das avenidas movimentadas e de gente chata. Evitar o primeiro era fácil, o resto da lista era nem sempre conseguia evitar.


Chegou ao andar em que trabalhava e passou pela porta de um amigo. Amigo? Ela não saberia ou poderia afirmar isso com muita certeza, talvez “conhecidos íntimos” fosse uma definição mais adequada já que apesar de se verem todos os dias e de conversarem com alguma regularidade os dois se mantinham numa confortável superficialidade, quebrada aqui e ali por lampejos de alma e pele. Ele a olhava de um modo que não permitia a ela arrumar aquele homem na prateleira dos amigos, não com aquele jeito de olhar. Não com as frases que escapuliam em meio às trivialidades. Ele espernearia muito para se encaixar naquele nicho.


Passava das cinco da tarde quando ela chegou . Era uma dessas tardes quentes em que as noticias sobre o aquecimento global e geleiras desaparecendo fazem todo o sentido. Talvez em função do calor, talvez por não suportar a ideia de falar com os colegas do escritório, ela voltou sobre seus próprios passos até a porta do amigo e depois de uma pausa para tomar coragem, entrou quando sentiu uma pontada da melancolia. Torceu para que o sorriso que ele às vezes lhe dava aliviasse parte da dor.


Ele a esperava quase todos os dias, embora as visitas não fossem diárias, ele as esperava. Por isso sorriu. Ela tinha o olhar meio vago e exalava um cheiro bom de sexo, que não combinava com aqueles cabelos presos e o ar meio desamparado. Ou talvez combinasse e fosse essa a razão do apego que ele tinha pelas visitas, aquele ar de pássaro assustado. Fosse por que razão fosse, ela o fazia sorrir e havia dias em que ele precisava disso. O sorriso era tão irreal quanto o peso que ela trazia na alma, mas quem se importava?


Conversaram sobre coisas triviais. O livro de Asimov que ela tinha dado de presente a ele, sobre música, sobre os amigos, sobre os inimigos e sobre o tempo. O desejo nadava sob aquelas palavras e os fazia sorrir. Ele pensava que teriam mais uma daquelas conversas desconexas em que nunca se dizia o que realmente importava e ela pensava que uma das poucas coisas verdadeiras que tinha e sentia era aquele desejo.


Não queria casar com ele, nem queria que ele a amasse, era algo mais simples, mais primitivo, uma vontade de invadir e se deixar invadir.


Ele olhou para o relógio disse que já era tarde, mas ela lembrou que os franceses chamavam o orgasmo ou a sensação que vinha depois dele de petit mort e achou que talvez essa morte em miniatura fosse o bastante para aplacar o vazio. E sem dizer nada trancou a porta para depois dar-lhe um beijo ávido e que parecia interminável. Não falaram nada, ela porque estava farta de palavras e ele por temer que as palavras interrompessem aquele estupro consentido.


(Rosa Cardoso)

Imagem : la petite mort small
https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjdraSVkBJilD5gwhMxJqiPY61epzzNQMB4f-iii1Hk4PIzsrINAv5nAp8XQaYAQRmbyzaLFMcD15TGcbaBrs6ZYnH_Q59I0marmcOumwVIScPdBuqTGrpnewZLed5AqbjZ286PrwldCw/s1600-h/la+petite+mort+small.jpg

2 comentários:

ükma disse...

Ohh, será que ela gozou??

Iriene Borges disse...

Essa prosa tá muito boa. Sempre espero que continue.