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19.9.09

Raio X

Só a dor que o poeta sente transborda dos olhos da alma enxaguando o papel de grafite, e as suas folhas de flores.

Flores são coloridas, aromáticas, tem seus espinhos e defesas — coisas de quem aprendeu que a generosidade traz mágoas. Refletem a tristeza do poeta que as brotou, toda a delicadeza de sua alma, toda a alegria de dar consolo a quem precisa mais, todo o desespero de quem merece sentir sempre.

Quem sabe eu não mereço saber do vento que alisa as pétalas que riscam minhas faces, todas elas, que se há sorriso em alguma é porque falta alegria a outra. Mas e que isso me importa, que isso importa a você, leitor?

—Não, não é possível me entender. Acho que nem você, Sol, consegue.
— Por que acha que não?
— Porque sua luz não é capaz para atravessar minha capa de espelhos. Ela vai se refletir, e o que você, Sol, vir não serei eu e, sim, meu esconderijo.
— Você é uma flor, Baunilha. Pode se fechar, mas não consegue se esconder. Eu sei que seu orvalho reflete minha luz, mas eu preciso olhar seus olhos e sentir sua alma; sou chama por fora, mas dentro sou gelo, se lhe tocar te queimo, se não te amar apago. Que faço eu?
— Ache uma Lua por aí. Ela não queima ao seu toque; ame-a e você não se apaga.
— Luas giram em torno de um planeta, Baunilha, e se posso tocá-las é porque são insensíveis ao meu toque, e se pudesse amá-las preferiria morrer.
— Você sabe muito bem que sou frágil, morro esta noite.
— Se fosse eterna seria uma lua. É por isso que é tão sensível, delicada e viva, porque é mortal.

E se eu não fosse uma flor de baunilha? Se eu tivesse dedos que congelassem ao tocar na pena... Como é possível exaurir tanto amor? A poeira do que resta dele resseca meus lábios, cola. Mas eu nem gritaria, já não era possível. Minha voz apagou quando perdi o tato. A pele que cobre meu corpo virou vidro, e eu virei espelho. Olhe para mim, leitor. OLHE AGORA! Esse é você, irônico, não? Esse é você me analisando, medindo cada centímetro como se eu fosse vendável, como se existissem valores de verdade e eu fosse mensurável, eu sou mensurável. Serei mesmo eu?Pode algo indefinido ser medido, valorado, vendido e esquecido?

Cadê você, Sol? Ainda sou baunilha, mas o vidro, minha cápsula, meu carma me aprisiona dentro de mim. Quero sair, quero me esquecer, me indistinguir. Eu sei que não vale a pena, mas e se talvez...? Fique aqui comigo, mais um minuto, apenas sessenta segundos. Preciso do seu calor para viver, porque mesmo que eu aprenda a fazer quimiossíntese eu quero é ser queimada pelo seu toque, lhe reviver por dentro, só mais um minuto. Esperei tanto tempo para lhe encontrar, tive espinhos para nascer, e os arranquei sem anestesia por você. Meu perfume foi feito para atrair você, minhas pétalas são para me fazer delicada. Eu sou delicada, Sol, mas não sou frágil, eu suporto, juro... aguento. Fico sem água, abandono minhas folhas, basta me dar esperanças. Sou só uma flor boba, que vai morrer esta noite, mas eu perfumei o ar com meu amor por você, mas que besteira, eu sou verso derramado de poeta triste, e meu perfume é grafite no papel.

Concorda que não dá para entender o destino? Essa coisa de milhares de coincidências voltadas para o mesmo resultado, isso é destino. Mas quem foi que começou a espalhar que foi calculado por alguém além da própria sequência de fatos? Vai lá, idiota, a vidente vai ler sua mão, em dois segundos ela sabe que você foi largada por um canalha que saiu para buscar um cigarro e nunca mais voltou e que está louca para achar alguém. Dois segundos é muito pouco? O que você esperava repetindo sua história para todo mundo que tenha uma audição minimamente saudável para concordar com você que ele é um cafajeste que te usou? Daí a falar que você vai achar alguém não demora muito não é uma premonição, é puro raciocínio. Acabou de gastar cem reais com uma cigana na esquina? Sei lá o que você deve fazer, sou só uma flor que já foi testemunha de muitas más intenções masculinas — e que quase sempre dão certo. É hilário, não é, leitor? A gente é capaz de qualquer coisa quando está desesperado.

Só por um dia eu desejo esquecer quem eu sou, o que eu fui, para reaprender a ser. Mas de que isso me valeria? Eu já sou, e não há maneira certa para isso. Pode haver adaptações sociais, talvez isso eu devesse aprender. Ou não, por incrível que pareça, leitor, eu gosto de ter uma certa fobia social. Sabe por que eu sento sempre nas cadeiras da frente? Para ter sensação de ilusão, é, leitor, o que os olhos não veem o coração não sente. Outrora eu não sentia, raiva, amor, ódio, tédio, nada. Eu já fui uma flor de plástico, acredita? Eu era imortal. E troquei tudo isso pela minha miséria de morrer esta noite. Esta é a minha noite, a minha. E o que eu mais quero essa noite é senti-la, da luz das estrelas longínquas até a dor mais excruciante da agonia. Adeus, leitor. Adeus, Sol, amo você. Olá, Morte.

Um comentário:

Larissa Marques - LM@rq disse...

Mali,
cafajestes somos todos nós, o ruim é ser o preterido ao invés do escolhido, compreendamos a humanidade!
mara!