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15.3.10

macondo


“Entretanto, antes de chegar ao verso final já tinha compreendido que não sairia nunca daquele quarto, pois estava previsto que a cidade dos espelhos (ou das miragens) seria arrasada pelo vento e desterrada da memória dos homens no instante em que Aureliano Babilônia acabasse de decifrar os pergaminhos e que tudo o que estava escrito neles era irrepetível desde sempre e por todo o sempre, porque as estirpes condenadas a cem anos de solidão não tinham uma segunda oportunidade sobre a terra.”

O quarto estava frio, e pela janela, vi que a chuva continuava a cair. Chovia sem parar e eu me sentia um habitante de Macondo. Podia jurar que os lençóis ao meu redor estavam mofando. Levantei e escancarei a janela, deixando que o vento úmido lavasse os cheiros, as memórias e os desejos. Devo ter ficado muito tempo ali, pois quando me voltei ele estava lá me olhando com um ar preocupado e ao mesmo tempo irritado.

Fechei a janela não tanto por ele, mais pelos livros. Ele pegou um lençol e me envolveu num abraço que fez morrer todas as frases de adeus que eu tinha ensaiado. Era um daqueles gestos de carinho que faziam com que eu me enredasse cada vez mais naquela cama, naqueles braços, naquele beijo. Esses pequenos gestos me desmontavam. Logo eu que era diplomado em histórias sem futuro, diplomado em solidão assistida.
Ele me apoiou e seus olhos agora mostravam apenas carinho e preocupação. Comecei a suar, talvez fosse a febre. Passou a mão pelo meu rosto e senti minha cabeça rodar. Outro carinho desses e eu estaria perdido.

Ele me amparou pacientemente. Depois tirou minha roupa molhada e me colocou na cama, onde eu fiquei como um zumbi enquanto me enxugava os poucos cabelos. Esfregou minha cabeça até que toda a umidade sumiu. Depois, arrumou tudo e se acomodou na cama limpa, os braços em torno de mim. Caí na armadilha. Retorcendo-me de revolta, mas caí e antes que pudesse levantar meus escudos ou chamar o Batman eu já estava apaixonado.

Em algum lugar da velha cidade os sinos tocavam enquanto a chuva caia sem parar, enquanto o vizinho ouvia “futuros amantes” do Chico numa espécie de vaticínio absurdo. Em algum lugar naquela maldita cidade os sinos tocavam enquanto eu me perdia numa troca inútil de sentimentos e fluidos.


( Rosa Cardoso)

4 comentários:

Ruy Villani disse...

Desta vez pensei: vou ler sem preconceito, faz de conta que não é da Rosa. Fingi estar lendo um conto de autor desconhecido. Resultado: Lembrei de Rosa, de sua forma delicada de desnudar sensações.
Você é única, menina.

bemditorosa disse...

Obrigada, querido.

Jessiely Soares disse...

Você é única, menina. 2

Como você simplesmente consegue?

Fantástico!

bemditorosa disse...

Gosto dessa história. Obrigada pelo comentário, anjo.