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19.12.10

Confraternização


Eu a descobri pouco antes dela se mudar da casa ao lado. Moro numa casa muito antiga — com sótão, porão e um jardim cheio de árvores grandes e velhas. E da minha janela eu a vi chegando do trabalho. Gostei do que vi e me aproximei. A casa em que ela vivia pertencia à minha família e era grande demais para que ela vivesse sozinha ali. Mudou-se. No dia seguinte ao dia da mudança, eu comecei a exploração e logo a encontrei.

Foi fácil.

Passei a visitá-la e nos tornamos mais amigos. Ela tinha um namorado ou coisa parecida. Resolvi esperar. Por vezes ela vinha até minha casa, tínhamos amigos em comum. Era divertida, gentil, inteligente, mas havia dias em que ficava estranha. Tomada por algo como uma febre sazonal que a fazia escapulir assim que tinha chance. Deslizava como um felino altivo e se sentava sobre o muro do jardim. Eu a observava, mas a deixava em paz. Não podia lhe dar tanta atenção assim, minha esposa poderia se aborrecer, o namorado dela também.

Uma noite nos encontramos em outro bairro, numa festa de trabalho. Uma confraternização chatíssima. Sozinhos.
Achei tão apropriado que resolvi não desperdiçar a chance. Ela estava com aquele humor espectral que a fazia agir como um autômato gentil e educado. Continuava linda, gentil, divertida até, mas eu sabia que sua alma não estava ali. Pensava que se eu fechasse os olhos veria seu espírito vagando pelo teto.

Assim que a vi naquela noite me convenci de que aquela mulher não estava nem viva, nem morta, mas hibernando. Havia uma festa a nosso redor e enquanto fingia conversar eu a seguia com o olhar. Senti-me um pouco cretino pelo que pretendia fazer, por me aproveitar de seu evidente alheamento.

Ela saiu e eu a segui. Alcancei-a quando chegava à saída e a envolvi num abraço.

– Fugindo sem falar comigo?

– Oi. – Ela me recebeu com um abraço, um beijo no rosto e um sorriso melancólico. – Não estava fugindo, apenas indo embora.

– Vem. Eu te levo pra casa se estiver sozinha.

– Ia chamar um táxi...

– Bobagem eu te levo. Esquece o táxi.

Normalmente escapuliria com um sorriso e meia dúzia de palavras gentis, mas como disse ela estava em sua febre sazonal. Naquela noite seu espírito hibernava em alguma nebulosa distante e foi fácil conduzi-la até o carro. Antes de abrir a porta eu a beijei e recebi como recompensa um beijo distraído. Ela entrou. Não reclamou, não fugiu. Dirigi sem pressa. Ela olhava para a rua.

– Pensei que íamos para minha casa. Esqueceu o caminho?

– Não. Mudei de idéia.

– Percebi.

Ela voltou a olhar a rua. Chegamos a um dos meus muitos imóveis. Um apartamento que eu mantinha vazio e onde me refugiava quando queria ficar sozinho. A rua estava deserta, entramos na garagem escura. Nossos passos ecoando pela madrugada. Ela seguia tranqüila ao meu lado.

Deixou-se beijar no elevador, minhas mãos passeando vorazes e possessivas, sem me importar mais com o olhar triste ou com seu torpor. Quando chegamos ao apartamento teria rasgado seu vestido se ela não me tivesse impedido.

– Calma. Eu tiro pra você.

Despiu-se devagar, os olhos tristes fixos em mim, a pele branca refulgindo na luz do luar que entrava pelas janelas. Tirou toda a roupa com uma lentidão assombrosa.
– Você é linda. – Ela sorriu.

– E você é míope.
– Sei que está triste, se quiser te levo pra casa agora.

Ela riu. Uma gargalhada sonora.

– Mas é tarde pra isso não acha?

Deitou-se no tapete e eu a devorei ávido, embora evitasse seus olhos. A tristeza estava sempre lá. O corpo reagia e era perfeito, mas ela não estava ali, não inteira.Virei-a de costas, as mãos em concha sobre seus seios. Gozamos juntos e ficamos algum tempo abraçados em silêncio.

– É como se você não estivesse aqui,sua alma estava longe.

– E está, mas não era minha alma que você queria hoje, era?

– Engano seu. Gosto de você inteira.

– Você é míope. – Ela me beijou – faço tudo que você quiser hoje, aqui e agora, mas deixe minha alma fora disso.

Eu concordei e ela foi tudo que eu quis, obediente e doce, lasciva e firme, terna e voraz. Ficamos trancados ali até o meio da manhã seguinte, depois ela partiu. Outro dia eu a seqüestro de novo. Quero a alma e o sorriso que faltaram.


↑ Rosa Cardoso
Imagem de Fabian Perez

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