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14.5.09

A vingança do Sousa


Eram sete e meia da manhã quando ele abriu o e-mail e pipocaram onze mensagens da Glorinha. Onze. E era ainda terça-feira.

A Glorinha era daquelas pessoas que parecem convencidas de que amizade e amor se demonstram com Power Points e que bom humor a gente envia por spam. Quem tem uma amiga como a Glorinha sofre um bombardeio diário de mensagens divinas, lições de moral e piadas sem graça. Isso sem mencionar os vídeos – ah, os vídeos! – e as “fotos mais incríveis do mundo”. Essas, pelas contas do Sousa, já eram quinhentas e trinta e seis, incluindo quatrocentas e cinquenta e oito repetidas.

Com os onze e-mails daquela terça-feira fatídica, foi alcançada a soma impressionante de cento e noventa e seis e-mails inúteis enviados por aquela bem intencionada criatura no ano de 2008 – e ainda estávamos em junho. Sim, o Sousa estava contando. Ele não sabia bem com que finalidade, mas tinha resolvido montar uma planilha onde anotava, diariamente, os e-mails de Glorinha, desde as dezessete mensagens de votos para o ano novo recebidas nos seis primeiros dias de janeiro. Aquilo não podia ser normal.

O Sousa era um cara pacato. Boa praça, bom vizinho, bom funcionário, bom filho, educado, prestativo e amistoso, o Sousa era um cara pacato. Botafoguense, tímido, classe média, o Sousa sempre fora pacato. Não se tem notícia de nenhum episódio em que o Sousa tenha perdido as estribeiras, nem nos tempos rebeldes de adolescência. Mas o Sousa estava visivelmente irritado. E essa irritação, que ele não conhecia, parecia abrir as fronteiras para um outro Sousa. E este novo homem se perguntava por que uma pessoa tortura um conhecido com Power points de gosto duvidoso, poemas horríveis atribuídos a grandes escritores, advertências ameaçadoras envolvendo cinemas, agulhas, drinks e rins retirados em banheiras – e tudo isso achando que está praticando o bem? O novo e nada pacato Sousa que emergia naquela manhã comum queria compreender o que move Os Repassadores de e-mails, esses seres sem rosto que estão dominando o planeta e torrando a paciência dos seres normais.

Levantou-se, afagou o cão, foi até a cozinha e ligou a cafeteira, colocou dois pães de forma na torradeira, voltou, pegou o jornal na porta da sala, foi até o escritório, sentou-se novamente diante do computador e, para sua surpresa, ainda estava irritado. Marcou as onze mensagens para deletar, mas não houve alívio. Ardia nele um sentimento estranho, uma agitação miúda e nova, misto de irritação, de inconformação e de sede de justiça. Aquilo precisava parar. O Sousa precisava dar um jeito. O novo Sousa podia.

Com os dedos frenéticos, digitou www.aquipodetudo.com e em segundos adentrava um mundo obscuro e novo onde se podia conhecer e testemunhar as mais inenarráveis bizarrices sexuais de que se tem notícia. Foram necessários menos de dez minutos para que ele encontrasse o vídeo perfeito, cujo enredo envolvia uma mulher, um homem, fezes humanas e um cachorro, não necessariamente nessa ordem.

Deixou baixando o arquivo e retornou à cozinha, onde fez com calma o desjejum e alimentou Major. Em seguida, imbuído de uma calma perigosa, que em tudo destoava do olhar vidrado, voltou ao escritório, sentou-se diante do computador, verificou o tempo restante para o download e, experimentando uma satisfação indescritível, deu início à sua vingança. A primeira.

Muito serenamente, como quem planejara a maldade durante décadas, selecionou uma das mensagens da Glorinha e decidiu responder:

“Glorinha, minha safadinha,

Só ver seu nome na minha caixa postal já me deixa excitado. Não consigo esquecer nossa última ‘brincadeira’ – para ser sincero, não paro de pensar nisso. Você é a mulher com quem me sinto livre para realizar todas as loucuras, porque você não é apenas a mais gostosa de todas, você é moderna, sem preconceitos nem frescuras. Eu e Major estamos loucos para repetir a dose, estou pensando em marcar para quinta-feira no horário da sua caminhada, assim não teremos problemas com desculpas, o que você acha? Seu marido desconfiaria, nesse horário?

Não deixe de ver o vídeo que estou enviando para nos inspirar. Não é nada perto do que já fizemos – esse pessoal parece amador! *rs – mas serve para atiçar a lembrança e abrir o apetite. Da próxima vez, vou filmar nós três para poder matar a saudade depois.

Do seu taradinho ansioso,

Sousa”

O download estava concluído. Renomeou o arquivo com o nome de “Eu, você e Major”, anexou, selecionou a opção responder a todos e enviou. O engraçado é que o Sousa de verdade, o Sousa pacato era virgem e jamais conhecera Glorinha pessoalmente. Mas isso, claro, eram detalhes que os trinta e seis destinatários da mensagem não sabiam.

Tomou banho e saiu em seguida, perigosamente calmo, para comprar uma lanterna e uma corneta. Era o dia de estréia de Jornada nas Estrelas e o Sousa, o novo Sousa, decidira ir ao cinema atormentar um pouco os espectadores, só para variar.


Nálu Nogueira


(Texto criado para o 3o. Desafio de Escritores da Câmara dos Deputados - Maio/2009)

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