
Non, rien de rien,
non, je ne regrette rien.
Ni le bien qu'on m'a fait,
ni le mal, tout ça m'est bien égal.
(Non, Je Ne Regrette Rien - Piaf)
Sentia-se tão cansada que as pálpebras pareciam carregar pedras. As mãos trêmulas não governavam mais as agulhas, e o tricô nunca chegava ao fim. Os lábios ressequidos e sensíveis já não se davam aos sabores fortes e encorpados como era de gosto, e a boa e velha pimentinha era
coisa do passado. As lembranças já amareladas ou dependuradas pelas paredes eram companhias silenciosas e por vezes, intrusas nos seus momentos de solidão consentida. Insistiam em não deixá-la em paz, mesmo sabendo que escolhera terminar seus dias assim.
Foram anos de espera, mas ele nunca veio.
Abriu o baú empoeirado, guardou o tricô, as agulhas, os quadros.
Praguejou contra cada um deles: fodam-se! Fechou o velho baú, acenou uma banana, e desceu as escadas.
Degrau a degrau, alisando o corrimão com certa calidez. Sorriu.
Impossível não lembrar-se das escorregadas pela madeira fria. Chegava a molhar-se toda não só pela fricção da pele sensível sobre o móvel, mas principalmente por saber que lá embaixo alguém a esperava. Alguém, ávido pela doce visão do bumbum redondinho, e as partes íntimas deslizando pelo "pau" da escada. Sorriu novamente.
Boas lembranças. Aquelas sim eram dígnas das paredes em marfim clarinho, tão bem conservadas e adornadas pelas luminárias francesas, de extremo bom gosto.
Mas quem haveria de registrar suas peripécias pelo corrimão? Estavam todos ocupados demais em castigá-la com aves-marias, ladainhas, e salve-rainhas, pela fornicação com o "pau" da escadaria.
Desceu sorrindo, sentia-se bem por estar sozinha finalmente.
Ele não veio, nunca. Embora jamais tivesse perdido a esperança.
Por vezes sentiu-se penetrada de uma forma incompreensível, sentia o peso do corpo sobre o seu, o apetite, os poemas de amor sussurrados ao ouvido, o gozo derramado em seu leito. Acordava nua, plena, leve.
Mas sozinha.
Corria para a velha escrivaninha e registrava suas histórias tórridas, alucinações cheias de pecado, viagens por corpos másculos e robustos onde buscava sempre sua cara metade. E sentia-se compensada pela espera. Ao menos produzia boas histórias e talvez isso tivesse valor
algum dia.
Ao pé da escada, ergueu os olhos e reviu a cena. Escorregava de bruços, ainda com o uniforme do colégio, saia azul marinho, pliçada, meias três quartos, camiseta branca, protegia os seios com os braços e descia.
- Ah, calcinha branquinha... que lindo! - sussurrava baixinho o primo, lá embaixo. E suspirava encantado, escondendo com os cadernos o volume que se formava debaixo da calça azul marinho.
Na velha vitrola, Piaf lhe fazia companhia.
Sentiu-se úmida, sentiu-se viva. E novamente sorriu.
- Talvez ele estivesse ali o tempo todo.
Imagem tirada da internet, pesquisa google.
2 comentários:
Gostei da prosa Moniquinha. Melancólica das boas.
Pensei que já tivesse te dado as boas vindas por aqui, ms vejo que o blogger engoliu meu recado!
Adoro sua escrita e esse é o motivo mais forte quetraz todas as minhas convidadas!
Seja bem vinda!
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