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7.9.09

Nada de nada







Non, rien de rien,
non, je ne regrette rien.

Ni le bien qu'on m'a fait,
ni le mal, tout ça m'est bien égal.

(Non, Je Ne Regrette Rien - Piaf)








Sentia-se tão cansada que as pálpebras pareciam carregar pedras. As mãos trêmulas não governavam mais as agulhas, e o tricô nunca chegava ao fim. Os lábios ressequidos e sensíveis já não se davam aos sabores fortes e encorpados como era de gosto, e a boa e velha pimentinha era
coisa do passado. As lembranças já amareladas ou dependuradas pelas paredes eram companhias silenciosas e por vezes, intrusas nos seus momentos de solidão consentida. Insistiam em não deixá-la em paz, mesmo sabendo que escolhera terminar seus dias assim.

Foram anos de espera, mas ele nunca veio.
Abriu o baú empoeirado, guardou o tricô, as agulhas, os quadros.
Praguejou contra cada um deles: fodam-se! Fechou o velho baú, acenou uma banana, e desceu as escadas.
Degrau a degrau, alisando o corrimão com certa calidez. Sorriu.
Impossível não lembrar-se das escorregadas pela madeira fria. Chegava a molhar-se toda não só pela fricção da pele sensível sobre o móvel, mas principalmente por saber que lá embaixo alguém a esperava. Alguém, ávido pela doce visão do bumbum redondinho, e as partes íntimas deslizando pelo "pau" da escada. Sorriu novamente.
Boas lembranças. Aquelas sim eram dígnas das paredes em marfim clarinho, tão bem conservadas e adornadas pelas luminárias francesas, de extremo bom gosto.

Mas quem haveria de registrar suas peripécias pelo corrimão? Estavam todos ocupados demais em castigá-la com aves-marias, ladainhas, e salve-rainhas, pela fornicação com o "pau" da escadaria.
Desceu sorrindo, sentia-se bem por estar sozinha finalmente.

Ele não veio, nunca. Embora jamais tivesse perdido a esperança.
Por vezes sentiu-se penetrada de uma forma incompreensível, sentia o peso do corpo sobre o seu, o apetite, os poemas de amor sussurrados ao ouvido, o gozo derramado em seu leito. Acordava nua, plena, leve.
Mas sozinha.
Corria para a velha escrivaninha e registrava suas histórias tórridas, alucinações cheias de pecado, viagens por corpos másculos e robustos onde buscava sempre sua cara metade. E sentia-se compensada pela espera. Ao menos produzia boas histórias e talvez isso tivesse valor
algum dia.

Ao pé da escada, ergueu os olhos e reviu a cena. Escorregava de bruços, ainda com o uniforme do colégio, saia azul marinho, pliçada, meias três quartos, camiseta branca, protegia os seios com os braços e descia.
- Ah, calcinha branquinha... que lindo! - sussurrava baixinho o primo, lá embaixo. E suspirava encantado, escondendo com os cadernos o volume que se formava debaixo da calça azul marinho.

Na velha vitrola, Piaf lhe fazia companhia.

Sentiu-se úmida, sentiu-se viva. E novamente sorriu.
- Talvez ele estivesse ali o tempo todo.


Imagem tirada da internet, pesquisa google.

2 comentários:

Maria Júlia Pontes disse...

Gostei da prosa Moniquinha. Melancólica das boas.

Larissa Marques - LM@rq disse...

Pensei que já tivesse te dado as boas vindas por aqui, ms vejo que o blogger engoliu meu recado!
Adoro sua escrita e esse é o motivo mais forte quetraz todas as minhas convidadas!
Seja bem vinda!