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12.9.09

SIBILA





Era uma noite fria do começo de junho. Meu carro havia parado no meio de um imenso nada, o celular não tinha sinal e eu esperava na estrada, sozinho, desempregado, falido e mal pago. Depois de quinze minutos de raiva e recriminação, parei de pensar e apenas esperei. Preparava-me para desistir daquela tolice, quando Sibila surgiu das sombras e ficou um momento imóvel, a silhueta recortada contra o céu.

Nenhuma luz brilhava além do clarão mortiço da lua minguante que delineava as curvas que eu conhecia bem. Estava na mesma encruzilhada onde dez anos atrás eu a invoquei pela primeira vez.

— Pontualidade. Gosto disso num homem, especialmente quando ele é meu.

Meu coração começou a bater tão forte que meu peito doeu. Tive esperança de que ela não viesse. A saia balançava suavemente, respondendo aos movimentos do vento, mas ela não se afastava do ponto onde as estradas se encontravam. Atravessei a distância que nos separava tremendo, enquanto Sibila me saudava com um aceno e uma rajada de chuva fina e gelada, um truque bem típico dela.

— Você não me deixou muitas escolhas, deixou?

Sempre que pensam em seus demônios, as pessoas pensam em calor. Eu penso em frio, mas tinha esquecido que, ao voltar àquela encruzilhada, sentiria muito frio todo o tempo e não só pelo clima.

— Não reclame. Foram dez anos felizes que te dei. Uma família bonita, bom trabalho, grana. Tudo que me pediu, sem tirar nem pôr.

— Você se esqueceu de dizer que me tiraria tudo, assim.

Ela sorriu quando me aproximei e abriu os braços.

— Vem fácil, vai fácil. Você sabe que não sou nenhum anjo.

A pálida luz da lua brilhando em seu rosto produziu o resultado de sempre: uma quebra na linha de pensamentos infelizes. Aquela mulher era uma festa para meus olhos. Sorri, esquecido por um momento da razão do reencontro.Ela sorriu também, antes de me envolver num abraço, antes que eu me perdesse em seu perfume, antes do beijo. Era uma velha amiga que, com o passar dos anos, havia se tornado inimiga, mais uma na imensa lista de amigos a quem eu havia traído. Uma das muitas pessoas dedicadas a arruinar minha vida.

— Tá, sou seu, mas deixe minha família em paz. Eles não te devem nada.

Ela sorria enquanto deslizava a unha afiada e vermelha pelo meu rosto, deixando uma trilha de sangue. — Deixo. — Lambeu o sangue suavemente.

— Vamos terminar logo com isso, então.

Ela tirou o vestido e ficou ali, no meio da estrada, vestindo apenas suas meias sete oitavos e os sapatos de saltos intermináveis. O tempo passava denso e escuro. Fechei os olhos. Não precisava ver para saber que ela tinha uma tatuagem em forma de estrela na virilha, ou de como seus seios eram perfeitos. Na última vez, tudo me foi dado depois de um beijo. O beijo de agora seria o pagamento. Minha alma e tormentos menos suaves pela eternidade.

— Tic TAC tic TAC tic TAC... Vamos, querido. Tenho outras almas para tomar.

O tempo passava. Eu lutava para encontrar uma saída, mas não havia, a menos que fosse um bom exorcista. Desajeitado, beijei-lhe a tatuagem na virilha; ela contorceu o rosto num esgar de prazer, enquanto eu murmurava minhas últimas preces, as orações mais sentidas e verdadeiras que jamais fiz. Sibila gargalhou, ergueu-me pelo queixo e gritou alguma coisa que não pude entender, numa língua gemida, língua que já devia ser velha e esquecida antes que eu sonhasse em nascer; e, mesmo sem ter entendido o conteúdo das frases, senti meus pelos se eriçarem enquanto ela as dizia.

Antes do beijo final, ouvi um rosnado baixo, um desafio, vindo das margens da estrada, de onde surgiu uma figura negra e graciosa. Sibila largou meu queixo e disse algo suave e gentil à sombra escura e lhe estendeu a mão. A sombra respondeu com mais frases na língua morta e cravou os dentes no braço da minha bruxa, que cuspiu em sua direção.
Então, Sibila olhou para mim, e se eu duvidei por muito tempo que ela fosse o que dizia ser, agora tinha certeza: seus olhos vermelhos chisparam sobre mim, depois se torceu e se retorceu até virar algo que lembrava um gato, para desaparecer na noite. A sombra que viera em minha defesa desapareceu também e eu fiquei ali com o coração aos pulos.

Então, um ronco de motor à distância quebrou o encanto: um caminhão descia a estrada buzinando para o louco parado na encruzilhada. Caí no acostamento vendo o vermelho das luzes traseiras do caminhão, depois os insetos, depois as estrelas, depois mais nada. Corri para o carro, fechei os vidros e esperei por algum socorro.

Isso foi há uma semana. Sibila ainda vem à minha casa cobrar a dívida. Não aparece todas as noites, mas vem na maioria delas. Entra pela janela do banheiro e murmura coisas naquela língua estranha, desliza a língua pelo meu corpo e desaparece quando ouve o rosnar das sombras. Não sei o que fiz para merecer a ajuda, e egoísta e amedrontado, tento ser bom para que ela não suma.
Imagem de Alexandre Lanóia

5 comentários:

Ruy Villani disse...

Esses teus contos sempre me arrepiam. Misturam fantasia e alegoria da realidade como "nunca antes na história deste teu amigo".
Beijão

Iriene Borges disse...

O conto é uma delícia. Estava lendo sobre cinema e me ocorreu a cena da Salma Hayek dançando em UM DRINK NO INFERNO...a ilustração é um dado especial.

Larissa Marques - LM@rq disse...

tudo muito bom, desde a imagem até o escrito!

bemditorosa disse...

Obrigada pela presença, queridos. Beijos aos 3.

Flá Perez (BláBlá) disse...

que máximo!